Vamos ter de pensar em reinventar a Maçonaria…
A era da suspeição: da Wikipédia à IA
Desde o início dos anos 2000, a chegada da Wikipédia transformou a forma como os maçons abordam a investigação e a redacção das suas pranchas. No passado, uma prancha sobre um tema como “O simbolismo do pavimento mosaico” ou “A história do Rito Escocês Antigo e Aceite” exigiria horas de pesquisa em obras especializadas, visitas à biblioteca da obediência ou discussões com irmãos e irmãs mais experientes.
Com a Wikipédia, tudo está à distância de alguns cliques. Mas esta facilidade tem um preço: a suspeição generalizada. Cada conferencista era escrutinado, as suas fontes questionadas. Quantas vezes um Venerável Mestre ouviu um comentário do género: “Muito interessante, mas parece copy / paste da Wikipédia, não é?
Com a Inteligência Artificial (IA) em 2025, esta suspeita já não se justifica, mas por uma razão muito mais radical: a IA está agora a ultrapassar as capacidades humanas na síntese e produção de conteúdos. Modelos como o ChatGPT, Grok (desenvolvido pela xAI), Copilot, Perplexity…, ou os seus sucessores em 2025, podem produzir um quadro completo em poucos minutos, com referências históricas precisas, análises simbólicas coerentes e até citações maçónicas adaptadas ao contexto.
Um Aprendiz que tenha dominado o comando da sua IA pode agora pedir-lhe que escreva uma prancha sobre “As influências da Cabala na Maçonaria” e obter um texto que rivaliza com o de um Mestre experiente. Então, qual é o objectivo de continuar a trabalhar?
Os desafios Enthoven e Le Tellier: o alarme está a soar
Vejamos os dois desafios mencionados na introdução, que ilustram a evolução meteórica da IA. Em 2023, Raphaël Enthoven, um filósofo dos media, enfrentou uma IA num exercício de ensaio filosófico para o bacharelato. O tema era: “A tecnologia torna-nos mais livres? Enthoven obteve 20/20, a IA 11/20. No seu livro “L’esprit artificiel, une machine ne sera jamais philosophe” (2025), celebra esta vitória como prova de que a IA carece de profundidade, intuição e sensibilidade humana. Mas esta pontuação de 11/20, embora inferior, já é impressionante para uma tecnologia que ainda está a dar os primeiros passos. Como o próprio Enthoven salienta, a IA produziu um texto estruturado, com referências correctas a Kant e a Heidegger, mas faltou-lhe nuance e originalidade.
Um ano mais tarde, em 2024, Hervé Le Tellier, vencedor do Prémio Goncourt 2020, enfrentou um desafio mais criativo: escrever um conto dentro de limites precisos. Contra o ChatGPT, Le Tellier produziu um texto literário, mas a IA surpreendeu os juízes com a sua capacidade de criar um enredo coerente, personagens credíveis e uma narrativa fluida. Embora a IA não tenha “ganho” oficialmente, demonstrou que podia competir com um escritor de renome. Como refere a RTL, “não perdeu, e isso é uma vitória por si só”.
Estes dois exemplos mostram uma tendência clara: a IA está a progredir a um ritmo exponencial. Se, em 2023, obteve 11/20 em filosofia e, em 2024, rivalizou com um Prémio Goncourt em escrita criativa, o que acontecerá em 2026 ou 2027? Uma prancha maçónica, que se baseia frequentemente na investigação histórica ou na análise simbólica, é um exercício muito mais simples para uma IA do que um ensaio filosófico ou um conto literário. Por outras palavras, os dias das pranchas “feitas em casa” acabaram.
A crise da prancha maçónica: um sintoma de um mal-estar mais profundo
A prancha: um pilar do método maçónico
Em alguns Ritos, a prancha tornou-se o coração do método maçónico. É um exercício intelectual e espiritual que permite ao Maçom trabalhar sobre si mesmo enquanto faz uma contribuição para a Loja. Escrever uma prancha sobre um tema como “O Simbolismo da Luz” requer pesquisa, reflexão e introspecção para ligar o tema à sua própria jornada iniciática. Na Loja, a apresentação da prancha é seguida um debate em que os irmãos e irmãs enriquecem o tema com as suas próprias perspectivas. Este processo colectivo é suposto encarnar o ideal maçónico de “reunir o que está disperso“.
Mas, ao longo das últimas décadas, muitas lojas perderam o sentido mais profundo deste exercício. Nalgumas obediências, nomeadamente nas que privilegiam o trabalho social (como o Grande Oriente de França, a DH, a GLMU, a GLMF… e mais recentemente a GLFF), as pranchas transformaram-se em apresentações enciclopédicas ou em fóruns políticos. Falam de bioética, de laicidade e de geopolítica, muitas vezes em detrimento do simbolismo e do trabalho interior. Esta deriva já enfraqueceu o significado iniciático da prancha, e a IA acaba de dar o golpe final.
A IA e a obsolescência das pranchas generalistas
Vejamos um exemplo concreto. Imaginemos um Maçom a preparar um livro sobre “A história da Maçonaria em Orleães“. Em 2025, ele poderá pedir a uma IA como o Copilot para produzir um texto completo em poucos segundos. Eis o que a IA poderia fazer:
- Uma introdução aos primórdios da Maçonaria em Orleães, com o papel de Luís II de Pardailhan de Gondrin, Duque de Antin, nomeado governador em 1721.
- Uma cronologia pormenorizada: a criação das primeiras lojas, como L’Union e Saint-Jean em 1760, o seu saque em 1793 e o seu renascimento no século XIX com Les Adeptes d’Isis-Montyon e La Véritable Amitié.
- Uma análise das tensões entre secularismo e religião durante as celebrações joaninas de 1907, quando os maçons marcharam para protestar contra influência da Igreja.
- Informações sobre personalidades maçónicas de Orleães, como Jean Zay, Ministro da Educação (1936-1939).
- Uma conclusão sobre o estado catual da Maçonaria em Orleães, com cerca de mil membros e três templos activos.
Este texto seria preciso, bem estruturado e com boas fontes (a IA pode mesmo citar obras como “Histoire de la franc-maçonnerie française” de Pierre Daniel ou os arquivos municipais de Orléans). Então, porque é que um Maçom passaria horas a escrever uma prancha semelhante, sabendo que a IA o pode fazer melhor e mais depressa? Para as matérias de conhecimento geral, a prancha maçónica é agora obsoleta.
Os limites da IA: experiência e introspecção
Dito isto, a IA tem uma grande limitação: não pode sentir, experimentar ou introspeccionar. Um quadro baseado na experiência pessoal do Maçom – por exemplo, “O que o Rito me ensinou sobre a fraternidade” ou “A minha experiência de iniciação ao grau de Companheiro” – permanece fora do alcance da IA. Estes trabalhos, que exigem autenticidade emocional e reflexão pessoal, manterão o seu valor na Loja. Mas quantas pranchas se enquadram atualmente nesta categoria? Em muitas Lojas, as pranchas são apresentações factuais, não testemunhos iniciáticos. É aqui que reside o problema.
Uma crise mais ampla: a perda do sentido maçónico
O Ritual: um pilar esquecido
A obsolescência das pranchas é apenas a ponta do icebergue. Ao longo das últimas décadas, muitas lojas perderam de vista o significado do Ritual, que está no centro do processo maçónico. O Ritual – com os seus gestos, palavras e símbolos – é uma linguagem universal que transcende as palavras. Permite ao Maçom viver uma experiência interior, ligar-se à egrégora da Loja e progredir no caminho iniciático. Mas, nalgumas Lojas, o Ritual tornou-se uma formalidade, uma decoração folclórica, ou mesmo um embaraço para aqueles que preferem os debates sociais.
Esta deriva é particularmente marcada nas obediências que optaram por um trabalho “social” em vez de simbólico. Se o Ritual for esvaziado do seu sentido e as pranchas se tornarem obsoletas face à IA, o que é que resta a estas lojas para justificar a sua existência?
As pranchas: a última razão para nos reunirmos
Neste contexto, as pranchas eram muitas vezes a última razão para os maçons se reunirem. Constituíam um pretexto para se reunirem, trocarem ideias e manterem uma aparência de vida maçónica. Mas se a IA tornar este exercício obsoleto, como é que estas lojas vão sobreviver? Há o risco de as reuniões se tornarem meros clubes de discussão, sem qualquer ligação com o processo de iniciação. E num mundo em que as redes sociais e os fóruns oferecem espaços de debate muito mais acessíveis, porquê continuar a reunir-se em lojas?
Reinventar a Maçonaria: caminhos a seguir
Um regresso ao ritual e ao simbolismo
Para sobreviver na era da IA, a Maçonaria tem de regressar aos seus fundamentos: Ritual e simbolismo. O ritual não é uma mera decoração, mas uma experiência vivida que envolve o corpo, a mente e a alma. Oferece algo que a IA nunca poderá reproduzir: uma ligação profunda com o sagrado, a comunhão com irmãos e irmãs e uma viagem interior. As Lojas precisam de devolver ao Ritual o seu lugar central, formando os oficiais para o dominarem e tornando os membros conscientes do seu significado simbólico.
Da mesma forma, o trabalho simbólico deve ser prioritário. Em vez de debater a bioética ou a geopolítica, as lojas poderiam concentrar-se em temas intemporais: o simbolismo das ferramentas, o significado das fileiras ou a meditação sobre os números. Estes temas, que requerem uma abordagem intuitiva e espiritual, são menos vulneráveis à IA, porque dependem da interpretação pessoal e colectiva.
Pranchas centrados na introspecção
Embora as pranchas generalistas sejam obsoletas, as pranchas baseadas na experiência pessoal e na introspecção ainda têm futuro. As lojas poderiam encorajar trabalhos como “O que o grau de Mestre me ensinou sobre mim próprio” ou “A minha experiência da cadeia de união“. Estas pranchas, que exigem autenticidade emocional, são um antídoto contra a IA, porque não podem ser produzidos por uma máquina. Também ajudam a reforçar os laços entre os membros, encorajando a partilha e a escuta.
Uma encontro sobre as pranchas: repensar o método maçónico
Como sugerido na introdução, há uma necessidade urgente de organizar um encontro sobre as pranchas no seio das obediências em causa. Este encontro poderia reunir representantes de diferentes Lojas para reflectir sobre o futuro da prancha num mundo dominado pela IA. Eis algumas ideias:
- Redefinir o papel da prancha: deve ser uma declaração intelectual ou um testemunho de iniciação?
- Integrar a IA como uma ferramenta: em vez de rejeitar a IA, os maçons poderiam utilizá-la para investigação, concentrando-se na análise pessoal. Por exemplo, uma IA poderia fornecer dados históricos, mas o Maçom forneceria a sua interpretação simbólica.
- Criar formatos inovadores: as Loas podem experimentar novos formatos, como pranchas colectivas, meditações guiadas ou workshops práticos (por exemplo, o corte de pedra).
Uma renovação da iniciação: a Maçonaria como experiência vivida
Para além da prancha, a Maçonaria precisa de se reinventar como uma experiência vivida, e não apenas como um fórum de discussão. Isto significa redescobrir as iniciações, as cerimónias e o trabalho coletivo. Por exemplo, as lojas poderiam organizar saídas especiais dedicadas à meditação, à contemplação dos símbolos ou aos rituais de passagem. Podem também reforçar os laços com a natureza, organizando trabalhos ao ar livre (por exemplo, cadeias de união num bosque ou perto de um rio), para se reconectarem com aspecto universal da Maçonaria.
Finalmente, a Maçonaria poderia abrir-se a novas formas de expressão. Porque não integrar a arte – música, pintura, poesia – nos trabalhos da Loja? Uma Loja poderia, por exemplo, pedir aos seus membros para criarem uma obra inspirada num símbolo maçónico e depois partilhar o seu significado. Estas abordagens, que se centram na criatividade e na emoção, são um baluarte contra a desumanização da IA.
Um desafio, mas também uma oportunidade
A chegada da IA em 2025 marca um ponto de viragem para a Maçonaria. As pranchas generalistas, baseadas em conhecimentos acessíveis a todos, tornam-se obsoletos. Mas esta crise é também uma oportunidade para a Maçonaria se reinventar. Regressando ao ritual, dando ênfase ao simbolismo e encorajando o trabalho introspectivo, as lojas podem redescobrir a sua essência iniciática. Devem também experimentar novos formatos, integrar a IA como ferramenta e repensar o seu papel num mundo em mudança.
Sem querer fazer de Cassandra [1], é urgente actuar. As obediências que optaram pelo trabalho social têm de se colocar as questões certas: como sobreviver num mundo em que a IA ultrapassa os humanos na produção de conhecimento? Um encontro sobre as pranchas poderia ser um primeiro passo. Mas, para além disso, a Maçonaria no seu conjunto precisa de se reinventar, de voltar a ser aquilo que nunca deveria ter deixado de ser: um caminho de iniciação, uma busca de esclarecimento e uma experiência de fraternidade. Como diz o ditado maçónico,
“é na adversidade que se corta a pedra bruta“
Cabe-nos a nós, maçons, transformar este desafio numa oportunidade de renovação.
Charles-Albert Delatour
Fonte
Notas
[1] Na mitologia grega, Cassandra (grego antigo: Κασσάνδρα / Kassándra) é filha de Príamo (rei de Tróia) e de Hécuba. Algumas fontes consideram-na também irmã gémea do vidente Heleno. Por vezes é chamada Alexandra por ser irmã de Paris-Alexandre.
Ela recebe de Apolo o dom de prever o futuro em troca da promessa de se lhe oferecer. Recusando-se a aceitar o deus, este decreta que as suas previsões nunca serão acreditadas, nem mesmo pela sua família.
De acordo com outras fontes, como Higino e Apolodoro, Cassandra não quebrou nenhuma promessa; Os poderes foram-lhe dados como tentativa de sedução e é quando estes falham em fazê-la amá-lo que Apolo amaldiçoa Cassandra.
Fontes
- Observações gerais sobre evolução das práticas maçónicas e o impacto da tecnologia, com base em testemunhos e análises disponíveis em 2025.
- Le Petit Journal, “Raphaël Enthoven: ‘L’esprit artificiel’, AI put to the test“, 2023.
- RTL, ” When writer Hervé Le Tellier takes on ChatGPT: will AI kill literature? “, 2024.
- Ligou, Daniel. Dicionário da Maçonaria. Paris: PUF, 1987.
- Bauer, Alain, e Barraud, Pierre. Le pouvoir des francs-maçons. Paris: Plon, 2010.
- Pitágoras e a Maçonaria
- O silêncio do Aprendiz
- Grau 15 – Cavaleiro do Oriente (REAA)
- Os Benefícios de Ser Maçom
- O Grau 17 do REAA – “Cavaleiro do Oriente e do Ocidente”
A inteligência artificial, não que eu seja retrógrado, mas para mim é a tercerizacão da inteligência humana.