Noé e a iniciação maçónica

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Noé

“O Povo que não tem virtude acaba por ser escravo”

(Francisco Pinto da Fontoura)

Introdução

Como preâmbulo, gostaria de enfatizar, que a realização de um trabalho maçónico é uma oportunidade e não uma obrigação. Não é oportunidade para mostrar qualidades literárias inexistentes, mas, sim, de buscar o aperfeiçoamento individual e colectivo. É claro, que devemos fugir para bem longe do emprego de figuras de linguagem enfáticas, prolixas e pomposas na tentativa da persuasão inútil ou por exibição, fazendo discursos bombásticos, ornamentados e quase sempre vazios.

Porém, é um dos nossos deveres como Maçons, o de nos aperfeiçoarmos na arte da palavra, ou seja, dedicar-nos à Arte da Retórica, uma das sete ciências ou artes liberais dos antigos.

Dentro do Templo quem fizer uso da palavra deve demonstrar conhecimento de Retórica, pois, é dever o cultivo desta arte, para que os presentes se possam ilustrar cada vez mais” [1][2][3].

E não só na Oratória, mas, também e principalmente, na escrita: “Se disseres que me amas, acreditarei. Mas, se escreveres que me amas, acreditarei ainda mais…[1][2][3] ou “… Quem escreve constrói um castelo, e quem lê passa a habitá-lo[1][2][3].

Por outro lado, os Maçons, devem lutar sem tréguas pela manutenção da liberdade do ser humano, especialmente, na sua acepção mais nobre, a liberdade de pensamento e expressão. Nos dias correntes, infelizmente, opinar virou um desporto de risco.

Com liberdade de pensamento, não haverá jamais escravatura, pois, até se pode escravizar o corpo, mas, nunca se escravizará a mente.

A única certeza é que duvido, e se duvido eu penso, e se penso logo existo”, dizia Descartes.

A Maçonaria como uma escola deve instruir os seus membros para discussões tolerantes, com exposição de pensamentos, permitindo que do diálogo surja sempre a verdade ou, pelo menos, a melhor verdade.

E Verdade costuma ser multifacetada, tornando-se uma barreira facilmente transponível.

Liberdade não impõe a Necessidade de equidade ou concordância, mas especialmente, de termos a consciência de que a razão pode estar além das nossas crenças e isto deveria bastar para que, com Bondade, reflictamos sobre as nossas posições; nunca haverá ganha-ganha!

Infelizmente a Bondade pode ser selectiva para o indivíduo, mas é indulgente no grupo.

Quanto à Necessidade, é sim, a barreira que mais gera dificuldade de transposição, devendo ser determinante para a balização de muitos dos nossos comportamentos.

Saltamos, pois, desta digressão e vamos à ideia principal: tentar responder por que a Maçonaria estuda Noé ou qual a importância deste personagem para a nossa Instituição?

É importante lembrar que um dos objectivos fundamentais de todas as religiões é estabelecer a moralidade e a justiça no mundo.

Afinal, quem foi Noé?

Sem entrar em detalhes cansativos, mesmo porque a literatura relacionada é extensa e de fácil acesso, Noé ou Noá, da palavra hebraica que significa “descanso, alívio, conforto”, é o nome do herói bíblico que teria recebido ordens do Grande Arquitecto do Universo, que é Deus, para que construísse uma arca que salvaria a criação do cataclisma que estaria por chegar.

Noé aparece na décima geração depois de Adão e tornou-se o centro desta que é uma das mais conhecidas histórias bíblicas. De acordo com a tradição, Noé era filho de Lameque e neto de Matusalém.

Margeando interpretações individuais, é bom ressaltar o que conta a história: Matusalém escolheu uma esposa para o seu filho Lameque e esta ficou grávida. Quando nasceu, repararam que era um bebé muito diferente dos outros e Lameque teve medo. Dirigiu-se a seu pai Matusalém para contar-lhe o sucedido e disse-lhe:

Eu tive um filho estranho, diferente de qualquer homem, e a sua aparência é como a dos filhos de Deus do céu; a sua natureza é diferente e não é como um de nós.”

(Enoque 106:7)

Matusalém ouvindo isto, viajou para longe ao encontro de Enoque e contou-lhe o sucedido; este ouvindo tudo, respondeu-lhe:

O Senhor fará algo de novo na terra, porque na geração de meu pai Jared, alguns dos Anjos do Senhor transgrediram a palavra de Deus e a sua lei, e uniram-se pecaminosamente com as filhas dos homens e tiveram filhos. Estes filhos resultantes desta união foram gigantes, não de acordo com o espírito, mas, de acordo com a carne. Por isto, Deus destruirá a terra com um grande dilúvio e haverá grande destruição e castigo. E este filho que nasceu de teu filho será salvo, e os seus filhos com ele. E toda a humanidade restante morrerá.”

(Enoque 106:13-17)

O Grande Arquitecto do Universo, que é Deus, revelou a Noé o seu plano, concedendo-lhe juntamente com a sua família e muitos animais, a primazia de serem salvos do dilúvio e da enchente, que duraria 40 dias e 40 noites.

Por que tamanho privilégio? Por que era justo e seguia aos ensinamentos divinos ou porque, afinal, era um “gigante”, filho de um dos “filhos de Deus do céu”?

São dúvidas insolúveis.

Após o dilúvio, Noé, deu, pois, início ao processo de repovoamento da Terra. Por isto, biblicamente, admite-se que a humanidade seja sua descendente.

De qualquer forma, independente de aspectos religiosos, crenças, concepções e interpretações, todos deveríamos seguir sete leis básicas de moralidade, conhecidas como as Sete Leis de Noé.

Elas receberam este nome porque, como mencionado acima, Noé representa o ancestral de toda a humanidade. As Leis de Noé são leis simples que visam propagar a moralidade e o comportamento apropriado para todo ser humano.

São, pois, as Sete Leis de Noé [4]:

  • Avodah zarah (עבודה זרה) – Não cometer idolatria;
  • Birkat Hashem (ברכת השם) – Não blasfemar;
  • Shefichat damim (שפיכות דמים) – Não assassinar;
  • Gezel (גזל) – Não roubar;
  • Gilui arayot (גילוי עריות) – Não cometer imoralidades sexuais;
  • Ever min ha-chai (אבר מן החי) – Não maltratar aos animais (só é permitido tirar a vida de um animal para se alimentar).;
  • Dinim (דינים) – Estabelecer sistemas e leis de honestidade e justiça.

Há, ainda, o relato de uma lei adicional, que é a prática da caridade e de actos de bondade e gentileza.

Que importância tem Noé para a Maçonaria? Ou, por que estudar Noé?

O misticismo judaico revela que antes do Dilúvio, o mundo físico era insensível à realidade espiritual. Os homens se corromperam porque não acreditavam ter qualquer obrigação ou responsabilidade moral.

A Cabala revela que as águas do Dilúvio foram um grande mikvê, o banho ritual que purifica objectos, e, principalmente, o corpo e alma de seres humanos. As “águas de Noé” que inundaram o mundo, purificaram a matéria física, permitindo aos seus habitantes uma maior consciência da realidade Divina e uma maior ligação espiritual entre o homem e o seu Criador.

Choveu na terra durante 40 dias e 40 noites

(Génese 7:12)

Mas, porque 40 dias exactos? O número 40 está ligado à purificação e o propósito do Dilúvio era limpar e purificar o mundo. Para ser válido, um mikvê necessita de um mínimo de 40 medidas de água de chuva ou de fonte natural. Da mesma forma, as águas do Dilúvio ter-se-iam originado nas águas das chuvas e de fontes naturais da Terra, inundando o mundo progressivamente durante 40 dias.

Após a purificação, surgem as Sete Leis de Noé [4] que representariam um caminho ao ser humano para uma vida honrada e moral, tanto nas suas acções como indivíduo, como quando em sociedade.

A sociedade humana somente pode funcionar de uma forma moral e correcta se for organizada e justa. Os seres humanos devem estabelecer leis civis e impô-las por meio da justiça. Os males da sociedade – violência, crime, mau comportamento, injustiça ou pobreza – devem ser combatidos. Os seres humanos não podem ignorar leis civis e esperar que a justiça Divina corrija os erros das suas sociedades.

A Maçonaria elegeu símbolos como objectos de estudo, visando o aperfeiçoamento moral e espiritual do indivíduo. E nisto, não é diferente das religiões ou outras ciências.

Tantas vezes se definiu a Maçonaria dizendo que “é uma ciência moral, velada por alegorias e esclarecida por meio de símbolos”; expressa o princípio exacto que acabamos de anunciar: a Maçonaria é uma ciência, uma filosofia, um sistema de doutrinas que se ensina de um modo peculiar por alegorias e símbolos. Este é o seu carácter interno, pois, as cerimónias são adições externas que não afectam a sua essência.

A filosofia da Maçonaria tem por objecto a contemplação do carácter divino e do humano.

A ossa filosofia considera o Grande Arquitecto do Universo, que é Deus, como um ser eterno, existente per se, em contraposição a mitologia dos povos antigos sobrecarregada de múltiplos deuses e deusas, de semideuses e heróis; ao homem como ser imortal, se reserva nesta vida, a preparação para a outra, eterna e futura, em idêntica contraposição à filosofia da antiguidade que restringia a existência humana à vida presente.

Ao definir como Noaquitas [3] os descendentes de Noé, havia a intenção de perpetuar a ideia de que a justiça pode vencer os poderosos e que os humildes também podem obtê-la. Assim, se combate o orgulho, a vaidade e o egoísmo.

Todos os seres humanos deveriam tentar amparar os pobres e indefesos.

Noé era um pregador de justiça. Portanto, os seres humanos, seus descendentes, deveriam ser justos e correctos uns com os outros, seja no campo profissional, seja no pessoal e, especialmente, como Maçons.

É inconcebível que na Maçonaria se possa assistir a ausência de resposta para a Necessidade de determinados actos!

Permito-me o entendimento, antes de qualquer concepção religiosa ou divina, que o dilúvio e a enchente representam um ritual de passagem.

É a iniciação do ser humano em novos caminhos e verdades.

O grande mikvê ou banho ritualístico representado pelo evento cataclismático divino, pode ser comparado mesmo, se assim o quisermos, à Iniciação Maçónica, início de uma nova vida ético-filosófica. Não apenas a Iniciação como aceitação de regras de convivência de um determinado grupo.

A verdadeira iniciação é uma alquimia mental que transforma o ser no seu conteúdo interior e não somente a sua “casca” aparente: “Não há caminhos que levem das trevas para a LUZ sem que haja compromisso, dedicação, tolerância e prévia purificação[3].

Por isto, podemos deixar vaguear o livre pensar e supor que Noé representou o compromisso e a dedicação; o dilúvio a purificação; e a tolerância, a conquista posterior do desenvolvimento espiritual.

Walter Roque Teixeira – CIM 184.372 – ARBLS Palmeira da Paz nº 2121, Oriente de Blumenau – GOB/SC – GOB

Bibliografia

  1. Camino, Rizzardo da: “Rito Escocês Antigo e Aceito: 1º ao 33º”. Madras Editora, São Paulo, 2ªd., 1999;
  2. Girardi, João Ivo: “Do meio-dia à meia-noite: vade-mécum maçónico”. Nova letra Gráfica e Editora, Blumenau, SC, 2006;
  3. Carvalho, Assis: “A Maçonaria Noaquita”, Caderno de Estudos Maçónicos: O Aprendiz Maçónico (Grau I), págs. 43-46, Ed. A Trolha, Londrina (PR), 1ª Ed., 1995;
  4. As Sete leis de Noéhttps://pt.wikipedia.org/wiki/As_sete_Leis_de_No%C3%A9.

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3 thoughts on “Noé e a iniciação maçónica”

  1. WALTER ROQUE TEIXEIRA

    Por justiça e com pedido de desculpas, relembro:

    No ano de 1966, o Hino foi oficializado como Hino Farroupilha ou Hino Rio-Grandense, por força da lei 5213 de 05 de janeiro de 1966, quando foi suprimida a segunda estrofe.

    HINO RIO-GRANDENSE

    LETRA: Francisco Pinto da Fontoura
    MÚSICA: Comendador Maestro Joaquim José de Mendanha
    HARMONIZAÇÃO: Antônio Corte Real

    Como a aurora precursora
    do farol da divindade,
    foi o Vinte de Setembro
    o precursor da liberdade.

    Mostremos valor, constância,
    Nesta ímpia e injusta guerra,
    Sirvam nossas façanhas
    De modelo a toda terra,
    De modelo a toda terra.
    Sirvam nossas façanhas
    De modelo a toda terra.

    Mas não basta pra ser livre
    ser forte, aguerrido e bravo,
    povo que não tem virtude
    acaba por ser escravo.

    Mostremos valor, constância,
    Nesta ímpia e injusta guerra,
    Sirvam nossas façanhas
    De modelo a toda terra,
    De modelo a toda terra.
    Sirvam nossas façanhas
    De modelo a toda terra.

  2. Ciro Paz Mazuco

    Consta neste artigo, lá quando do início, ” Povo que não tem virtude acaba por ser escravo ” frase esta como sendo de autor desconhecido. Gostaria de informá-los que em 1934, por ocasião do centenário da Revolução Farroupilha, a letra escrita pelo militar e poeta Francisco Pinto da Fontoura, mais conhecido como Chiquinho da Vovó, foi escolhida pelo Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul como a versão oficial do hino do estado, onde nele está contida a dita frase.

  3. Carlos Becker Berwanger

    “Povo que não tem virtude acaba por ser escravo.”. Trecho da letra do Hino do Rio Grande do Sul, Brasil, de autoria de Joaquim José de Mendanha.

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