Tomar dos Templários: a sede portuguesa da Ordem dos Templários

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Se eu pudesse imaginar um castelo templário, esse seria o de Tomar. Sobe-se até ele por um caminho fortificado que costeia os bastiões externos por seteiras em formato de cruz, e ali se respira o ar dos cruzados desde o primeiro instante.

Umberto Eco

A primeira visão do viajante ao chegar a Tomar é impressionante. Existe uma vila e um rio, o Nabão, mas é um monte, atrás e acima do povoado, que domina a paisagem. Nele há um castelo. Parece inexpugnável. A história mostrou que de facto o é. Trata-se de um castelo Templário: o castelo de Tomar, sede da confraria em Portugal de 1160 até 1312.

Esta praça forte foi edificada com a missão de ser ao mesmo tempo a sede, quiçá definitiva, da Ordem e a cabeça principal da defesa da linha do Tejo. Curiosamente, a sua feliz localização foi resultado de uma segunda opção. Originalmente, o castelo seria feito a partir das ruínas da antiga fortaleza de Ceras, na freguesia de Alvioleira, no concelho [1] de Tomar, em terras doadas pelo rei Afonso Henriques para compensar a confraria pela perda dos direitos eclesiásticos de Santarém. Contudo, não se mostrou um local dos mais apropriados para se erguer uma praça forte com a magnitude planeada. Tampouco possuía os requisitos necessários para receber o convento e a igreja que se seguiriam. Ademais, o solo era árido e de pouca elevação. Portanto, vulnerável a ataques.

Contra todos estes argumentos negativos a escolha recaiu ali por dois motivos: um económico e outro sentimental. Pretendia-se aproveitar algo dos alicerces do prédio anterior e existia ao mesmo tempo o ardoroso desejo por parte dos monges-guerreiros templários de habitar sobre solo sagrado (SANTOS, 1879, p. 34-5). No caso, às proximidades do local do martírio de Santa Iria, ou santa Irene, ocorrido na vila goda de Nabância, que existia ali no século VII. Esta personagem inspiraria o nome de Santarém, palavra que deriva de Sant’Iria. Foi nos arredores dessa cidade, então Scalabis, distante alguns quilómetros de Nabância, que foi encontrado o corpo da mártir Iria, trazido pelo rio.

Aquela região é de povoação antiquíssima e guarda as suas histórias, sacras e profanas. Existe registo de presença humana sedentária desde o Paleolítico Superior. O seu primeiro núcleo urbano arqueologicamente comprovado remonta a Segunda Idade do Ferro. No final do século I a. C. a região foi submetida pelos romanos, que aplicaram o seu tradicional sistema de exploração económica denominado de villa rustica. Nestes moldes fundaram a povoação que seria conhecida como Sellium, na margem esquerda do rio. Não possuía necessariamente ruas, senão a sequência da estrada que levava a ela, ladeada por um conjunto aleatório de pequeníssimas casas. Os seus habitantes quase não ficavam nos seus lares. Seguindo o costume romano, estavam sempre trabalhando ou na praça pública.

Inicialmente Sellium sobreviveu basicamente da agricultura e do pastoreio. Depois da definitiva conquista da Ibéria e submissão dos lusitanos, sobretudo pela acção de Décio Júnio Bruto e Cipião Ermilio, entrou num período de notável prosperidade económica, conhecendo, pode-se afirmar, certa grandeza (CASTRO, 1955, p. 119-29). Como era de praxe nas províncias romanas mais distantes, que ao contrário da capital do Império gozavam de certa liberdade municipal, teve o seu senado, o seu corpo aristocrático e as suas magistraturas electivas (COULANGES, 1998, p. 437). As ruínas do que se supõe ser o fórum de Sellium ainda podem ser vistas na margem esquerda do rio. Este núcleo urbano é citado nos escritos de Ptolomeu e nos itinerários das viagens de Antonino, escrito no início do século III, sendo localizada por ele a meio caminho de Scalabis, futura Santarém, e Conimbriga.

Com a decadência romana, e as invasões bárbaras, Sellium desapareceria, dando lugar a Nabância, vila de hábitos germânicos que foi durante vários anos a fronteira natural entre os suevos e os alanos, até a invasões árabes. Apesar de algumas versões desta passagem histórica indicarem que não houve combates, saques ou destruição incondicional do universo das povoações godas entre o Tejo e o Mondego, tendo todas se rendido em condições razoáveis, sem resistência, o facto é que elas não sobreviveram muito tempo após o assenhoreamento mouro. Nabância ficou abandonada durante cerca de 443 anos, até a região ser tomada por Afonso Henriques, que a doou aos Templários, em 1159. Somente com o século XII já avançado houve uma tentativa relevante de repovoamento da zona, a partir da construção do castelo que seria a sede do Templo, sobre os escombros do castelo de Ceras.

Porém, a prática mostrou que era quase impossível recuperar de forma satisfatória Ceras. Sendo obvio que os trabalhos progrediam lentamente, aos tropeços, Gualdim Pais, mestre do Templo português entre 1158 e 1195, decidiu procurar outro local. Encontrou-o ali mesmo nas proximidades. Um monte na margem direita do rio Nabão.

Lendas tomarenses pregam que a escolha se deu por razões místicas, a partir de práticas de “geomancia”, baseadas em exercícios de tirada de sorte e predestinação. Reforçando esta visão mágica está o facto de que o monte fazia parte de uma pequena cadeia de sete elevações, que o tornou conhecido como o Lugar dos Sete Montes (BARBOSA, 2000, p 152), como as sete colinas de Jerusalém, as sete colinas de Roma ou as sete colunas de Constantinopla. Cidades de forte apelo mítico que, em maior ou em menor medida, fazem parte da biografia templária. Mas, apesar do pitoresco destes mitos, o certo é que o experiente guerreiro que era o mestre da Ordem levou em conta, sobretudo, as características defensivas do lugar. O monte, de respeitosa elevação, possuía duas vertentes íngremes, convergindo para uma extensa planície, garantindo uma visão ampla da paisagem a ser defendida. Um local perfeito para se construir uma fortaleza. Assim foi feito.

Uma lápide de mármore que serve de verga da janela do segundo piso, do lado sul, da Torre de Menagem do castelo data o início da sua construção em 1160. Lê-se:

Em primeiro de Março de 1198, durante o reinado de Afonso, ilustríssimo rei de Portugal, Gualdim, mestre dos cavaleiros portucalenses do Templo, juntamente com os seus irmãos, começou a construção deste castelo, de nome Tomar, que o rei ofereceu a Deus e aos cavaleiros do Templo [2].

Conveniente lembrar que na contagem da Era Hispânica, regularmente usada em lápides comemorativas, que se iniciava a partir da dominação romana da Península Ibérica no ano 38 a. C., 1198 equivale ao ano de 1160 da cronologia gregoriana. Outro detalhe destacável é o dia indicado como o do preciso início das obras: primeiro de Março. Provavelmente trata-se de uma data simbólica, de fantasia. O dia primeiro de Março era o primeiro dia do ano legal.

O nome do castelo e, por extensão, da vila, veio daquele dado ao rio Nabão pelos conquistadores árabes. Neste idioma a palavra “tomar” indica a pureza das suas águas. Outra opinião, menos plausível, apregoa que a denominação Tomar derivou de Tomás, do nome de são Tomás da Cantuária, um dos “santos templários” ao lado de Santo Antão, São Brás e São Vicente, e, talvez, patrono daquela edificação. É indubitável que trabalho escravo muçulmano foi utilizado (CASTRO; HOMEM, 1996, p. 309). Era praxe e repetiu-se nas edificações dos castelos templários em Soure, Ega, Redinha e Pombal.

Contudo, se podemos indicar com precisão o início da construção, é impossível determinar o seu término. As obras no castelo de Tomar estenderam-se por séculos a fio. Ao longo do tempo infindos acréscimos à estrutura original foram realizadas. Entre reformas e ampliações, em fins do século XVIII ainda se somavam pavimentos.

No que se pode chamar de seu primeiro feitio, aquele feito para atender as necessidades imediatas dos primeiros monges-guerreiros que o ocuparam, sob o comando de Gualdim Pais, o prédio organizava-se em três grandes espaços rigorosamente delimitados. O primeiro e mais importante era a Alcáçova: área de 0,5 hectares reservada ao uso exclusivo dos freires templários. Ali ficava a torre de menagem e a cisterna. A Alcáçova tinha comunicação directa com o convento. O oratório dos monges, chamado de charola, e os claustros mais antigos remontam ao século XII. O mosteiro, tal qual o restante do castelo, é marcado pelo estilo maciço. É murado como uma pequena fortaleza dentro da outra fortaleza. O segundo era o Pátio: espaço aberto dentro das muralhas que podia receber as populações das circunvizinhanças em caso de ameaça ou cerco. O terceiro era a Almedina: com cerca de 1,5 hectares, destinava a receber o estabelecimento dos civis que habitavam o castelo.

Entre os séculos XI e XII, era comum a existência de espaços virtualmente livres ou desabitados dentro do limite dos recintos amuralhados. Serviam para cultivar hortas que em caso de cerco sustentariam a resistência dos assediados, para receber refugiados de invasões ou mesmo para guardar o gado dos arredores. A documentação denomina-os genericamente de “cortes”. Em Portugal esta palavra tem um sentido dúbio. Também era muito usada para designar uma casa ou um casal (VENTURA, 1979, p. 55), uma família no caso. Seja como for, o certo é que uma das funções do castelo de Tomar era receber, abrigar, famílias, nas suas “cortes”, espaços livres, em caso de invasão. O que foi necessário fazer nas tentativas de invasão moura ocorrida nos últimos anos do século XII.

O emir marroquino Yasuf Ibne Iúçufe encabeçou uma ofensiva em 1184. Comandando um numeroso exército, o líder do império mauritano cruzou o Mediterrâneo, aliando-se a sarracenos dos reinos ibéricos numa marcha contra os cristãos. A tentativa de invasão islâmica fracassou. Para os europeus, o símbolo máximo do malogro da missão foi o novo e igualmente malsucedido cerco aos muros de Santarém. A vitória da resistência portuguesa foi atribuída, em grande parte, ao comando de Gualdim Pais, que manteve os seus monges cavaleiros como primeira linha de defesa dos campos de Coimbra, protegendo o rei do avanço do inimigo.

Anos depois, durante a Primavera de 1190, ocorreu uma nova e ainda maior tentativa de invasão, comandada por Yacub Ibne Iúçufe, filho e sucessor de Yasuf. O novo emir preparou cuidadosamente um numeroso e bem treinado exército que cruzou o estreito de Gibraltar. Na Andaluzia, os marroquinos somaram as suas forças com mouros vindos de Córdova, Granada e Sevilha. As numerosas tropas islâmicas tentaram retomar Silves. Fracassaram, mas não se abateram e decidiram marchar através do Alentejo, passando por Évora, até as margens do Tejo. Atravessaram o rio, acima de Santarém, e atacaram Torres Novas e Abrantes. Desta vez obtiveram sucesso. Cheios de confiança, as hostes de Yacub seguiram rumo a Tomar. Não tinham dúvidas de que tomariam a sede portuguesa do Templo e humilhariam os seus defensores. Em 5 de Julho chegaram ao sopé do monte em que a fortaleza de Tomar se ergue. Incendiaram campos cultivados, afugentaram camponeses e burgueses vilões.

O resultado desta ofensiva é descrito em letras góticas, esculpidas numa lápide na parede da igreja de Tomar, ao lado da porta principal, sobre as escadas. Um registo laudatório da resistência onde se lê [3] (CONDEIXA, 2000, p. 126):

No ano de 1190, em 5 de Julho, veio o rei de Marrocos comandando quatro mil cuadrillas [4] de cavalaria e quinhentos mil guerreiros de infantaria. Colocou cerco a este castelo por seis dias. Destruiu tudo o que encontrou fora dos muros. O citado mestre com os seus freires livrou Deus de cair nas suas mãos. O mesmo rei voltou para a sua pátria com inumerável perda de homens e bestas.

Tomar jamais tombou. A fortaleza não foi conquistada naquela vez e nem em nenhuma outra futura. Os mouros jamais tentaram nova sedição. O que ficou na memória tradicional daquela única tentativa foi que, após algum tempo de assédio, os mouros conseguiram derrubar os portões da ala sul do castelo e adentraram aos milhares na sua cerca exterior. Estavam muito próximos da vitória. Mas os templários, comandados por Gualdim Pais, lutaram com tamanho ímpeto na protecção da sua sede que colocaram os inimigos em fuga, pela mesma porta que entraram, causando-lhes consideráveis baixas. Segundo a tradição, foram tantas as mortes que a entrada sul passou a ser chamada de Porta do Sangue (CABRITA; GIL, 1986, p. 137). Depois disso, seguiu-se alguns dias de cerco inábil, que terminou em 11 de Julho, quando Yacub ordenou uma retirada apressada, jamais explicada totalmente.

Via de regra, caso de cerco a uma praça-forte, existe mais possibilidade de sucesso na resistência do que no assédio. Ainda assim, nada pôde impedir que os seis dias de aquartelamento dos templários no seu castelo se convertessem em motivo de orgulho perpétuo para a confraria. A prova definitiva de que eram os incontestáveis senhores da linha do Tejo. O ponto alto da sua Tradição Épica, em Portugal. Contudo, analisando o episódio criticamente, a vitória parece ter sido menos da resistência templária do que das condições sanitárias vividas pelos assediadores. Aparentemente, o motivo mais provável para a retirada do numeroso exército mouro foi algum tipo de peste que acometeu as suas fileiras. Possivelmente malária. Febres endémicas eram comuns nos períodos de estiagem nos campos banhados pelo Tejo. Os muçulmanos teriam chegado numa estação especialmente profícua para a disseminação da peste. Um erro estratégico. Yacub não teve alternativa senão bater em retirada.

O próprio emir marroquino parece ter sido uma das vítimas fatais da febre. Tendo levantado o cerco, os assediadores dirigiram-se para Sevilha e Algeciras. Não tentaram sequer confirmar a posse das diversas povoações e praças fortes que, no caminho de ida, tomaram. Sabe-se somente que Yacub morreu de alguma doença não identificada, antes mesmo de conseguir embarcar de volta para a África (SANTOS, 1998, p. 39-45) [5].

cavaleiro templário

Como demonstrou este episódio, a função estratégica do castelo de Tomar era, sobretudo, defensiva. A edificação foi erguida ao estilo dos castelos românicos. Com muros altos e espessos, feitos em cantaria ou alvenaria. Destinavam-se mais para defesa do que ao ataque. As torres eram quadrangulares. O Templo, em Tomar, introduziu em Portugal uma novidade da arquitectura militar: a torre de menagem. Mais alta e mais resistente do que as usadas até então. Neste sentido, convêm observar que o desenvolvimento da arte da construção de fortalezas ocorrido na Idade Média evoluiu para um desenho com muito mais ênfase na engenharia do que na arquitectura. Mais importante que o apelo estético eram os cálculos de peso e resistência dos materiais (MUMFORD, 1982, p. 392). Posteriormente, foram erguidas outras torres de menagem nas fortificações templárias de Penas Rojas, em 1166, em Pombal e Almourol, em 1171, e em Longraiva, em 1174.

Com a construção da praça forte templária e a quase subsequente oferta de uma carta foral às populações que vinham habitar a vila nascente, a região de Tomar prosperou com enorme rapidez. O seu primeiro foral remonta a 1162 e era inspirada no foral de Coimbra, de 1111 (DOCUMENTOS MEDIEVAIS PORTUGUESES. Documentos Régios. p. 25. Tomo I, Volume I). O que não o fazia muito diferente do regime jurídico instituído pelo poder régio nas regiões vizinhas (CONDE, 1988, p. 27 – 28). Mas foi o que bastou para inspirar segurança e potencialidade. Atraiu diversos casais vindos das mais diversas partes do reino, que ali se fixaram. Esta importância rapidamente adquirida pode ser evidenciada por uma observação simples: no início do reinado de Dom Dinis (1279-1325), Tomar fornecia quarenta besteiros ao exército real. Um número bastante expressivo. Comparando com os concelhos mais próximos, ficava logo atrás de Santarém e Leiria, aproximado de Abrantes e Coimbra e bem à frente de Pombal, Torres Novas, Ourém e Montemor-o-Velho.

Sem dúvida, colaborou para o progresso o facto de Tomar localizar-se nas proximidades de uma das mais movimentadas rotas de passagem de Portugal medieval: a strada maiore. Esta rota antiquíssima, tendo sido traçada pelos romanos, manteve-se na Idade Média como a principal via de comunicação portuguesa, indo do Minho até os limites da Reconquista. Começava no extremo norte. Passava por Ponte de Lima, Braga e Porto. Passava como alternativa por Guimarães e Vermoin. Recomeçava em Gaia, rumando a Vila de Feira, Águeda, Coimbra e chegava a Tomar. O viajante que tendo partido do norte ou centro de Portugal e desejasse chegar a Santarém ou a Lisboa, geralmente passava pela vila templária. E, mais do que isto, tomando o rumo contrário, de sul para norte, Tomar estava também numa das principais rotas portuguesas para Santiago de Compostela (GUINGUAND, 1975. p. 69). Com a multiplicação de povoações protegidas pelas ordens militares ao longo da strada maiore, revigoraram-se diversas rotas comerciais e de peregrinação, nacionais ou internacionais, onde circulava excedentes da sua produção local (MUMFORD, 1982. p. 280).

A organização urbanística foi uma preocupação constante do Templo no processo de formação das povoações que fundaram. A parte mais antiga da vila de Tomar é um peculiar exemplo da aplicação de soluções de plantas urbanas marcadas pela simetria. Caracterizava-se pela regularidade do traçado das ruas, distribuição equilibrada do casario e presença de diversos espaços abertos, tais como praças e rossios, com a função de facilitar a circulação. Não apenas se seguia o modelo dos antigos povoados coloniais romanos, difundidos no medievo por meio das vilas fundadas pelos príncipes franceses, italianos e alemães, com disposição em forma de grade, tendo uma praça central funcionando como um mercado (PALEN, s/d, p. 321), mas o aperfeiçoava no sentido da funcionalidade.

Na documentação anterior ao século XII, em Portugal, não é comum encontrar ruas indicadas com nomes próprios definidos. Nos séculos X e XI, normalmente, usava-se definições genéricas tais como “orientalem via publica” ou “occidentalem via publica per medium”, ou seja: via pública oriental e via publica ocidental central. A partir do início do século XII, passou-se a indicar ruas, ou vias, ou vicos, como também se usava, por meio das suas características mais especificas, tal como a sua função económica/social ou algum acidente geográfico. No início do século seguinte já é usual encontrar indicações de nomes como “rua da Ponte” ou “vico de sobre a Ripa” (VENTURA, 1979, p. 54).

Apesar de grande parte da documentação concelhia de Tomar se ter perdido em estudos urbanísticos e arqueológicos, foi possível determinar o feitio aproximado que teria nos seus primórdios. No principio da sua povoação a vila se limitava às ruas do que se chamava Pé da Costa, próximas do monte onde fica a fortaleza, que se ligava a Calçada de São Tiago e a estrada que levava a Lisboa e Coimbra. Havia uma parte ribeirinha desta estrada que seguia até a confluência do riacho de Riba Fria e o Nabão. Ali existia uma praça, chamada da Ribeira ou do Município, onde ficava o Pelourinho, da qual partia um atalho até a antiga via romana e a rua dos Moinhos. Próxima a margem do rio Nabão ficava a igreja e o convento dedicados a Santa Iria. Segundo a tradição, foi neste local que o seu cadáver terá sido jogado ao rio. São construções, aparentemente, anteriores a presença templária em Tomar. Descendo o vale pela Calçada de São Tiago chegava-se à parte mais seca das várzeas, entre os ribeiros de são Gregório e a Riba Fria, onde funcionava uma espécie de campo de treinamento para os cavaleiros Templários. Por se dizer na época que lá se “corriam lanças”, o local foi baptizado como Corredoura, Nome que a tradição ainda conserva (ROSA, 1960, p. 27).

Apesar desta génese bucólica, a paisagem urbana tomarense não era de modo algum estática. Em 1165, já são mencionadas em documentos transacções comerciais de prédios em Tomar. Uma casa na vila foi vendida por um homem chamado Gonçalo Ferreira, juntamente com a sua esposa, que muitas vezes são citadas em cartas como essa, para um indivíduo de nome Pelágio Gonçalves. O trecho superior esquerdo do documento está ilegível, inutilizada por uma grande mancha de tinta. Ao lado e abaixo é possível ler: “[…] e realizei e firmei uma venda, eu Gonçalo Ferreira, […] a Pelágio Gonçalves e a sua Geluira Pelágio uma casa habitável em Tomar. Há uma pocilga nela. Em ordenança Gonçalo […] e Pedro testemunha. Fica voltada para a África na via pública” [6] (Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Gaveta III, maço 3, número 1).

Mesmo dentro dos muros do castelo transacções de propriedade ocorriam com regularidade, entre civis ou envolvendo o Templo. Em 1172 documentou-se uma doação a concretizar-se post mortem, visando o sufrágio da alma. “Eu, dona Justa, de boa fé e por meus pecados, faço doação ao Templo de algumas casas habitáveis que possuo dentro dos muros do castelo de Tomar” [7] (Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Leitura Nova. Mestrados. Folha 43 verso). Estas doações consistiram de propriedades localizadas ainda na Almedina. Outro documento, datado de 1178, cita a existência de prédios fora dos muros, na corredoura (Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Ordem de Cristo. Código 234. 2ª parte. Folha 31).

O crescimento populacional do povoado foi constante do século XII até o XIV. Apesar de enfrentar graves crises ao longo destes duzentos anos, Tomar não deixou de prosperar. A primeira metade do século XIII foi especialmente rica em desastres. Tiveram péssimas colheitas e fome generalizada em 1202 e uma terrível peste no mês de Agosto de 1206. Apesar destes flagelos, as décadas seguintes trouxeram os anos áureos do povoado. Os motivos foram vários. Para começar, a conquista de Alcácer do Sal, em 1217, e a queda de Badajoz e outras povoações vizinhas entre 1226 e 1232, garantiram uma maior segurança na linha do Tejo. Terminava o domínio almóada, iniciando um terceiro período de dominação taifas. Soma-se a isto o alarmante crescimento do banditismo no norte português, que provocou uma debandada em massa de populações para o centro e o sul do reino. Tal migração demográfica resultou, em Tomar, no surgimento de diversas novas ruas fora do perímetro muralhado.

Ademais, em 1230 o papa Gregório IX (1227 – 1241) concedeu indulgência a quem peregrinasse até a igreja de Santa Maria de Olival. A esta mesma igreja o rei Sancho II (1223 – 1248) deixou em testamento a quantia de duzentos maravedis. Remonta também destes tempos de prosperidade o início da construção da igreja de São João Batista, erguida na vila junto a corredoura. Somente foi terminada, tomando as formas que ainda hoje guarda, em estilo gótico português, semelhante ao de Santa Maria do Olival, no século XV, por ordem de Dom Manuel.

O crescimento populacional e económico foi diminuindo de intensidade a partir do começo do século XIV. Data desta época o abandono do plano urbanístico original. O ideal de regularidade deixou de ser imperativo. Este declínio urbano foi talvez resultado do período de confusão gerado pela extinção da confraria do Templo e a sua substituição pela Ordem de Cristo, somado ao declínio demográfico sofrido pela Europa no século XIV.

Dentro do pequeno universo urbano tomarense não era a praça central que cumpria o papel de aglutinador económico e social, como era comum no medievo. Sem dúvida, em Tomar, era o castelo templário que funcionava como o epicentro para praticamente todas as actividades da vila. Nele se recebiam tributos, se realizavam trocas de produtos agrícolas e, certamente, também era um centro consumidor. Por ele passava toda a produção regional e se decidia o seu destino.

Mas qual produção? Fundamentalmente, Tomar mantinha-se por meio da agricultura e da criação de animais. Boa parte do seu solo era ocupada por pastos. Permanentes ou alternados com a produção de cereais (CONDE, 1988, p. 11) e outros produtos. Os mais importantes eram o trigo, o centeio, legumes, favas, uvas, azeite e, sobretudo, a azeitona. Em 1576, um visitante, chamado Bartolomeu de Villalba, mencionou nos seus escritos que Tomar era terra de muitas águas e de muitas azeitonas (JANA, 1998, p. 229), declaração que se tornou célebre.

Em um segundo nível, a prática da pesca também possuía uma considerável importância dentro do sistema económico local. Igualmente a caça era bastante praticada, sobretudo de raposas e lobos, mas também de animais pequenos, como coelhos. Porém, parece não existir indicativos de que fosse uma actividade relevante.

Vital era a extracção de minérios. Ao longo do Lugar dos Sete Montes desenvolveu-se uma considerável actividade mineradora. Extraiam metais como o ferro e até mesmo ouro, muitas vezes em minas abertas e exploradas nos tempos romanos (GUINGUAND, 1975, p. 70). Além disto, retirava-se em grandes quantidades pedra, cal, barro e enxofre.

O uso de escravos mouros nestas minas não foi incomum. Mas estes não eram considerados parte do estrato de cidadãos. O foral de 1162 omite-se quanto àqueles moradores que não possuíam bens ou não respondiam por si. E não se tratava apenas de escravos mouros, mas também de cristãos muito pobres, tais como assoldadados, braceiros ou jornaleiros.

Segundo Alexandre Herculano, o foral de 1162 instituiu o que chamou de “concelho imperfeito”. Por este modelo estabeleceu-se duas categorias de habitantes com direitos e deveres distintos: os cavaleiros-vilões, os milites, e os peões, e os pedites ou tributari. Segundo o foral, “vobis que in Thomar estis habituri maioribus et minoribus cuius cumpre ordinis sitis”; ou seja: “vós que habitam em Tomar são em maiores e menores e cumprem ordens diversas”. O que definia a diferença entre um e outro era, fundamentalmente, a capacidade que tinham de possuir e manter montaria e armas para fazer a guerra. No medievo o guerreiro profissional, o bellator, era, em diversas ocasiões, obrigado a fazer campanhas ao lado de amadores. Mercadores, artífices e produtores rurais, mediante exigências legais ou regras sociais, também envergavam espadas. Exercer uma participação activa no exército local garantia um status que destacava o indivíduo da população em geral. No caso de Tomar, em função da presença do Templo, poderia até mesmo o nivelar aos privilegiados de outros concelhos.

Os cavaleiros-vilões que residiam em Tomar obtinham privilégios semelhantes aos infanções de outras vilas. Possuíam imunidade fiscal e foro próprio. As mesmas honras caberiam aos clérigos da milícia. Ainda que não fossem nobres de nascimento teriam os mesmos favores que os cavaleiros-vilões. O mesmo poderia ocorrer com vilões que conseguissem fazer fortuna. A exigência para se almejar a posição era que o indivíduo possuísse uma casa, uma junta de bois, quarenta ovelhas e duas camas, ou o equivalente em valores monetários. Nada de faustoso, portanto, mesmo para os níveis medievais. De modo geral, mesmo os nobres empobrecidos possuíam mais. Neste sentido, o cavaleiro-vilão tomarense não precisava estar acima da condição social de um médio proprietário (CONDE, 1988, p. 219).

O outro estrato tomarense, a peonagem, era por sua vez formado, de modo geral, por pequenos proprietários e mesteiros. Em contrapartida, o direito concelhio exigia dos infanções puros que desejassem viver em Tomar a obrigação de sujeitarem-se ao estatuto inferior de cavaleiro-vilão, equiparando-se em honras aos demais milites da povoação.

Esta norma de cerceamento de direitos naturais na nobreza não era um privilégio dos núcleos urbanos templários. Diversos concelhos utilizavam-na. Muitos chegavam a proibir a fixação de infanções nos seus limites, temendo que depois de algum tempo vivendo entre eles passassem a desrespeitar as regras jurídicas locais, exigindo os seus privilégios. Porém, o facto de Tomar ser a sede de uma poderosa ordem monástico-militar garantia, de modo mais satisfatório, que a influência do estrato nobiliárquico se avolumasse.

Conceder liberdade foral as vilas significava em certa medida a renúncia do senhorio a alguns dos seus atributos, e também de muitas das suas obrigações, tornando-o, na prática, o primeiro entre iguais, no meio das outras entidades corporativas urbanas (MUMFORD, 1982, p. 276). No caso das vilas templários esse relevo era garantido pela prática de se entregar os cargos magistrados de juiz e alcaide, o chefe militar concelhio, normalmente reservados aos grandes nobres, a um freire do Templo, o comendador da confraria na região.

A ordem pública era também uma preocupação constante do Templo. A segunda carta foral de Tomar, de 1174, complementar à primeira, refere-se basicamente as questões jurídicas, as punições aos crimes cometidos no concelho, portanto, dentro da jurisdição dos Templários. Certamente, este documento surgiu como resultado do próprio crescimento da cidade. Nesses quatorze anos que separam o início da construção do castelo e a segunda carta foral, Tomar deve ter atraído todo o tipo de pessoas interessadas em desfrutar das suas “boas águas” e da protecção da Miles Christi; sendo, com certeza, a maioria delas sem meios, talvez fugitivas. Párias sociais que precisavam ser disciplinados (CONDE, 1988, p. 27) com o rigor da lei. Até porque, o ajuntamento de pessoas nas cidades gera inevitavelmente embriaguez, rixas, brigas e vinganças, que, muitas vezes, redundam em crime (ROSSIAUD, 1989, p. 107).

O ambiente urbano medieval era, por definição, selectivo. Os migrantes constituíam ao mesmo tempo uma necessidade e um perigo. Um perigo do qual se tinha muita consciência. Mesmo em Portugal, onde as práticas de servidão feudal foram bastante peculiares, fixar-se numa cidade não era algo simples. Dependia da aceitação do universo da comunidade e muitas vezes da protecção de um padrinho. Alguém que inserisse o recém-chegado no corpo comunal, o iniciasse num ofício e que lhe facilitasse a aquisição de uma moradia. Este papel poderia caber a um familiar ou a um compatriota. Ainda assim, muitos eram expurgados.

Apesar deste rigoroso controle judicial e administrativo, desde muito cedo houve em Tomar uma velada, talvez a palavra certa não seja resistência, mas, desapego a aparentemente omnipresente e fundamental presença dos Cavaleiros Templários. Alguns cidadãos, excedendo os limites dos seus direitos forais, desafiavam-na.

Exemplo notório é o caso de João de Eanes, alcunhado de João Cão Calça Perra, tabelião em Tomar, até onde se sabe, entre 1190 e 1191. Ele entrou em querela com o Templo e com certo Aparício devido ao direito de uso de alguns moinhos na ribeira de Ceras (Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Leitura Nova. Mestrados. Folha 15). O Templo procurava manter para si a exclusividade da posse de moinhos e lagares de vinho e azeite (JANA, 1998, p. 231-32). Não foi possível encontrar documentos que indicassem o resultado da questão. Apesar disto, sabe-se que o problema dos moinhos se estendeu por séculos. Somente em 1615 um parecer régio o resolveu parcialmente. Baseado no foral novo de Tomar de 1520, instituído por Dom Manuel, o parecer mantêm a prioridade da Ordem de Cristo, herdeira do Templo, em construir e manter lagares nas vilas de Tomar e Pias e o seu termo; mas também concedeu aos populares o direito de, na falta, ou numa interpretação livre da lei, na insuficiência, de lagares e moinhos, construir, nas suas propriedades, engenhos particulares. As lagariças, como se chamava os lagares clandestinos, seguiram proibidas.

A autoridade do Templo sempre foi contestada nas terras que lhes foram doadas. Sobretudo pelo alto clero português, que não admitia a condição de isentos episcopais das Ordens Militares. As querelas judiciais eram constantes entre os lados. Mesmo depois do acordo de 1159, com Dom Gilberto, bispo de Lisboa.

Entre 1182 e 1184, o bispo de Coimbra moveu uma contenda contra os freires do Templo, exigindo o pagamento dos direitos episcopais sobre as Igrejas de Pombal, Redinha e Ega. O arcebispo de Braga, Dom Godinho, e o Bispo de Porto, Dom Fernando Martins, na condição de juízes delegados papais, deveriam decidir a contenda.

Um dos depoentes no caso, designado como presbítero Cipriano, afirmou que as igrejas de Pombal, Redinha e Ega, e, portanto, as vilas, foram erguidas oito anos após a tomada de Santarém e Lisboa. Segundo ele, a quarta parte de Ega já se encontrava cultivada quando da chegada dos Templários. Todo restante estava abandonado, com excepções de alguns poucos torrões de terra no Soure, cultivado pelos habitantes deste castelo. Outra testemunha, Martinho Salvador, afirma que vinte anos antes, no palácio de Afonso Henriques (1128 – 1185), ouviu o bispo Dom Miguel queixar-se contra os Templários ao rei, reclamando os direitos eclesiásticos das três vilas (AZEVEDO, 1937, p. 23-4).

Em suma, por meio de testemunhas provavelmente parciais, ligadas a Sé de Coimbra, tentava-se provar que os Templários não obtiveram aquelas áreas em litígio na condição de “terram desertam in marchia serracenorum”, ou terras desertas no caminho dos sarracenos, como a confraria sustentava. Mas que a receberam parcialmente ocupadas e já devidamente cristianizadas, já ligadas à diocese de Coimbra. Nestas condições, os freires não tinham direitos ao seu eclesiástico.

A doação de Idanha ao Templo servia como precedente na contenda. Doada a confraria em 1165, nada se fez nestas terras. Permaneceu deserta e estéril. Somente em 1194, anos depois do julgamento, por iniciativa régia, tentou-se realizar na região um plano de povoamento. Uma segunda doação ao Templo foi feita. O resultado foi novo insucesso. Seguiu-se uma onda de ataques agarenas e as vilas erguidas foram destruídas e saqueadas. A questão só foi resolvida definitivamente em Janeiro de 1229. O rei Sancho II entregou Idanha a um seu chanceler, mestre Vicente, e deu-lhe foral em Abril do mesmo ano, iniciando um bem sucedido processo de povoamento.

Uma análise do processo entre a Sê Coimbrã e o Templo indica que, de modo geral, os argumentos usados contra a confraria foram bastante contestáveis e frágeis. Se a comunidade rural de facto precedia a senhoria (CHERUBINI, 1989, p. 91), ou a urbana, por outro lado seria preciso considerar a sua importância imediata no contexto daquelas então desoladas regiões de fronteiras, que, sem dúvida, foram amplamente colonizadas pelo Templo.

Os delegados papais não entenderam assim. Terminaram dando vitória ao bispo de Coimbra, determinando que a quantia pedida fosse entregue no prazo de vinte dias após o recebimento do aviso oficial. Caso não se cumprisse a, em temos jurídicos, obligatio dandi, ou “obrigação de dar”, as igrejas disputadas em Ega, Pombal e Redinha seriam interditadas. Além disso, os desobedientes Templários, bem como os paroquianos comuns, foram ameaçados pelos legados papais de serem “ex autoridade apostolica quan in hac delegatione pungimur u os excomunicamus” (Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Sé de Coimbra. 1ª Incorporação. Maço 8. Documento 36), ou seja: “e com a nossa autoridade apostólica delegamos a sua purgação e os excomungamos”.

A ameaça não surtiu qualquer efeito. O Templo desacatou a ordem de pagamento e ignorou a excomunhão. As igrejas disputadas e os seus direitos eclesiásticos permanecem sob júdice ainda por muito tempo. Porém, em 1186, ocorre uma vitória da milícia na forma da bula Justis petentium desiderjis, do papa Urbano III (1185 – 1187), dirigida ao mestre provincial e Cavaleiros Templários portugueses. Nela se confirma os termos da concessão de Ceras, feita por Adriano IV (1154 – 1159), em bula do mesmo nome de 1159.

Papa Urbano, eterno servo de Deus. Dilectos filhos, mestre e irmãos da casa militar do Templo, saúde e apostólica bênção. Desejando realizar justiça digna e facilitar o consenso e o voto, avalio e transmito que não discordo do que se segue. Por assim dizer, dilecto Senhor e filhos, considero justa postulação e grata concorrência que mantenham os fundos eclesiásticos da terra de Ceras, do castro do castelo de Tomar que construíram, auxiliados pelo Senhor, e da capela de Zêzere [8] (MONUMENTA HENRICINA. Documento 10. Coimbra, 1960. v. I. p. 22-4).

Por outro lado, a querela com o bispo de Coimbra continuou e a excomunhão foi renovada em 1205, durante o pontificado de Inocêncio III (1198 – 1216), um pontífice pouco afeito aos Templários. Desta vez os juízes papais foram o bispo do Porto e o prior do Mosteiro de São Jorge, confirmando o anterior veredicto do Arcebispo de Braga, Dom Martinho, e um monge de Alcobaça, Fernando Mendes.

Um tipo de acordo entre as partes foi tratado em Abril do ano seguinte, arbitrado pelo rei Sancho I (1185 – 1211). Curiosamente, não se firmava sobre os direitos eclesiásticos, mas sobre as colheitas realizadas nas freguesias de Pombal, Redinha e Ega. Nesse acordo, os Templários se comprometiam a pagar cinquenta áureas anuais ao bispo de Coimbra, na Festa de Todos os Santos. Em contrapartida, o Templo poderia seguir indicando os clérigos responsáveis pelas igrejas, que deveriam sujeitar-se à alçada disciplinar do prelado. A sua autoridade episcopal passaria a ser reconhecida naquelas regiões, ainda que sob condições bastante específicas. Uma cláusula do tratado determina que: “E o Bispo de Coimbra obtém o direito de ser recebido nas vilas por onde agora se estende o seu episcopado uma vez por ano, desde que compareça a sua própria pessoa, conforme o costume” [9] (Arquivo Nacional da Torre do Tombo. 1ª Incorporação, Maço 9, Documento 21).

Em suma, a tensão entre o alto clero português e os Templários foi minorada, mas jamais desapareceu por completo. Estendeu-se ao longo de mais de um século. Não estava eminentemente diferente na época do processo movido contra a milícia pelo rei francês Felipe, o Belo (1285 – 1314), no início do século XIV, que culminaria na sua extinção.

Acusados de heresia, perseguidos e detidos em vários reinos da Europa, os Templários portugueses se refugiaram, sob as graças do rei Dom Dinis, na inexpugnável fortaleza de Tomar. Não é de se duvidar que os bispos portugueses imaginaram que teriam, enfim, a sua definitiva prestação de contas. Sobretudo quando foi anunciado por Roma, na bula Considerantes dudum, do papa Clemente V (1305 – 1314), de 6 de Maio de 1312, que os acusados de menor importância seriam julgados nos seus distritos de origem, em concílios provinciais.

O processo contra os Templários tornou-se um dos mais polémicos de todos os tempos. Envolveram altos interesses políticos, económicos e religiosos. Ficou conhecido como “processo da intolerância” (BERTIN, s/d, p. 209). Não cabe aqui analisar a culpa ou inocência dos Templários. Existe uma vastíssima bibliografia sobre este assunto. Numerosa, porém, raramente conclusiva. O facto é que, em 1311, mais precisamente em 3 de Abril de 1311, após cinco anos de discussões, o Templo caiu. Na Catedral de Saint-Maurice, diante de uma grande audiência de autoridades religiosas, padres e bispos, o papa Clemente V fez uma homilia sobre o versículo 5 do Salmo 1, onde se lê que “pois os ímpios não ficarão de pé no Julgamento, nem os pecadores no conselho dos justos”. Em seguida, leu a bula Vox in excelso, onde abolia o Templo enquanto ordem religiosa, e, por conseguinte, enquanto Miles Christi, proibindo se conjecturar entrar para o Templo no futuro, ou de receber ou usar o seu hábito característico, bem como “agir como um templário” (READ, 2001, p. 314). A punição para a inobservância de qualquer um destes itens era a inapelável excomunhão.

O decreto papal e o subsequente suplício do último mestre da Ordem, Jacques de Molay (1293 – 1314), na fogueira, criaram um problema para a Coroa portuguesa. O que fazer com a sempre protegida Ordem dos Templários em solo lusitano?

Os templários dos reinos ibéricos resistiram à prisão, refugiando-se nas suas fortalezas. Exigiam um processo isento, diferente do francês, obviamente dirigido e marcado por torturas. Acabaram sendo julgados em dois concílios provinciais: o de Salamanca, de 1310, e o de Tarragona, de 1312. Como resultado, os templários de Leão, Castela e Portugal foram considerados inocentes de todas as acusações em ambos.

Na sua maioria os membros espanhóis da confraria ingressaram na Ordem da Calatrava, na de Montesa ou mesmo na tradicional adversária Ordem dos Hospitalários, a maior beneficiaria da extinção (DEMUNGER, 2002, p. 196). Outros obtiveram permissão para viver em retiro em antigas casas templárias, recebendo pensões provenientes dos lucros obtidos pelas suas ex-propriedades. Em Aragão, o rei Jaime II (1291-1327), temeroso pela demonstração de poder dada pelos freires, exigiu que fosse criada outra confraria, baseada na de Montesa, de Valência, e sujeita a Ordem da Calatrava e ao abade cisterciense de Stas, para receber os templários do seu reino.

Em Portugal, como em Aragão, decidiu-se por criar outra confraria sobre os escombros da antiga. Uma Ordem eminentemente nacional. A herdeira dos bens e de muito da tradição do Templo foi a Ordem da Milícia de Cristo, criada em 1318. A Regra da Ordem dos Templários, inicialmente escrita por Bernardo de Claraval, sofrendo diversas modificações ao longo dos séculos, foi substituída pela Regra São Bento, conforme usada pela Ordem da Calatrava, até que se redigisse uma própria. Como sua antecessora, a Ordem de Cristo manteve uma estreita relação com a Coroa e foi detentora de diversos privilégios (PIMENTA; SILVA, 1989, p.196). O seu primeiro mestre foi Gil Martins, que já era mestre da Ordem de Avis. Ele transferiu a sede da confraria para Castro Marins, terra fronteiriça no Algarve. Contudo, alguns anos depois, em 1356, retornou para Tomar, a cabeça da resistência durante o processo.

Não que Tomar fosse o mesmo povoado dos tempos áureos do Templo. Muita coisa se tinha modificado na sua estrutura social e económica. Com o progressivo esvaziamento do sentido da cavalaria a partir do século XIV, reforçado em Portugal pelo término da Reconquista, a posição de um cidadão passava a ser medida cada vez mais pela sua fortuna e não pela sua participação no serviço militar local. A figura do homem-bom suplantava a do cavaleiro-vilão. A elite urbana passou a não ser mais formada unicamente por proprietários de terras, mas também por comerciantes e burocratas. A confusão gerada pelo fim da Ordem dos Templários certamente contribuiu para tal mudança (CONDE, 1988, p. 286), mas, com certeza, foi muito mais fruto da própria dinâmica da economia europeia em transformação no final da Idade Média. Por meio das associações e sociedades de mercadores, que, frequentemente controlavam o comércio atacadista nas cidades, os comerciantes assumiram a vanguarda do controle urbano. Em Tomar não foi diferente.

Mas a tradição jamais deixou de se fazer sentir. Não é por acaso que hoje, passados vários séculos da dissolução da Ordem dos Templários, são os castelos da confraria que caracterizam as cidades criadas ou protegidas pela milícia. Tomar segue como o maior exemplo deste fenómeno. Se o imaginário urbano é alicerçado pelo seu suporte visual (MENEZES, 1996, p. 149), nada é mais visível ali do que a presença de uma torre de pedra cortando o céu, com toda a memória de uma vasta colecção de histórias agregada a sua simples visão. A torre de menagem perdeu a sua função, e pode ter o seu valor estético questionado, mas não pode ser desagregada do seu valor histórico, que, na realidade, tende a crescer com o tempo (ARGAN, 1998, p. 228). Por tudo isto, Tomar permanecerá por muito tempo ainda como a cidade de “Tomar, dos Templários”.

Ademir Luiz da Silva

Notas

[1] Durante o domínio árabe em Portugal, houve diversas reuniões para se reorganizar a vida social. Surgiu daí os chamados concelhos, órgãos de governo local fundamentado na autoridade colectiva. O nome é derivado da palavra latina “concilium”, ou seja: reunião.

[2] No original: In: E: M.C. LXVIII. Regnante Alfonso. Illvstrissimo rege portugalis dominus. Galdino magister portucalensivm militvm templi. Cvm fratribus sus primo die marcii cepit hadificare hoc castelvm nomine Thomar. Qvod prefatus rex obtvlit. Deo: et militibus templii.

[3] Texto original: “Era MCCXXVIII: V nonas Julii. Venit rex de Marroquis ducens CCCC milia equitum et quingenta milia peditum: et obsedit castrum istud per sex dies: et delevit quantum extra murum invinit castellum: et prefatus magister cum fratribus suis liberavit Deus de manibus suis: ipse rex remeavit in patria sua cum innumerabili detrimento hominum et bestiarum”.

[4] Apesar de parecer o mais óbvio, as letras CCCC não indicam quatrocentos em números romanos, mas uma abreviação cifrada para a palavra cuadrilla, isto é: uma unidade táctica da cavalaria medieval. Era formada por quatro membros activos: um cavaleiro armado de lança e três archeiros sem armadura defensiva. Existia ainda um quinto elemento: um pajem, também montado e armado com uma adaga denominada “misericórdia”.

[5] Contudo, apesar dos esforços dos templários, a grande invasão moura de 1190 não resultou em absoluto fracasso. A partir das suas bases, o Islão ocupou praticamente todo o sul do Tejo, com excepção de Évora, vila defendida pelos freires da Ordem da Calatrava.

[6] No original: “[…] hec elt kan ya vendicionif ifirmitudituf gm iuffi face ego Gonzalvo Ferreir […]. Vendim aub Pelagio Gozalu zuros zua Geluira Pelaiz ves domo habuim i Thomar. Suit aut imini ei. In orzete Gozalo […] et Pedriz. Snalone. Pf fagudiz ina África pare via publica”.

[7] No Original: “Ego Dona Justa dolens meal peccatos deor mansiom Templi marta mea domos me as quas babeo intus castellum de Tomar iuxta murum.”.

[8] No original: “Vrbanos episcopus, seruus seruorum Dej. Dilectis filijs, magistro et fratribus domus militie Templi salutem et apostolicam benedictionem. Justis petentium desiderijs dignum est nos facilem prebere consersum et uota que a rationis tramite non discordant, effectu prosequente complere. Eapropter, dilecti in Domino filij, uestris iustis postulationibus grato concurrentes assensu, fundos ecclesiarum que in terra de Cera, in castro qui dicitur Thomar, auxiliante Domino, constructe fuerint et capellan de Ozizara”.

[9] No original: “Et recipiant colimbriensen episcopum in unaquaque predictarum villarm in pocuratjone more aliarum ecclesiarum suj episcopatus semel in anno quando venerit in propria persona predictas eccclesias ujsitare”.

Referências

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